Consolo no Paquistão

Onde fica o Paquistão?

Vizinhança amigável #sqn

Adoro sentar na janela para observar a geografia.

Welcome to the Marriott!

??Quando me dei conta, estava numa rodovia de Islamabad, a capital do Paquistão, a caminho do hotel. A cidade se espalhava por uma planície com avenidas largas e planejadas, uma capital utópica de linhas retas, como se essa ordem pudesse, de certa forma, emanar para o resto do caótico país. Compreendi porque diplomatas brincam que Islamabad fica a 30 minutos de distância do Paquistão. Apesar da pandemia, ainda era possível atravessar o planeta e cruzar fronteiras. Estava numa das regiões mais conturbadas do planeta e agradeci ter ao lado a companhia de um amigo nessa mini-aventura. Agora precisávamos de um banho. Precisávamos respirar sem máscaras e, mais do que tudo, precisávamos comer.

A decoração dos ônibus no país é famosa e fotogênica.

O hotel Marriott era protegido por uma barreira policial, uma inspeção de raio x e uma zona neutra até chegarmos na recepção. Algo comum no Paquistão eram ataques de terroristas fundamentalistas a prédios do governo e hotéis internacionais. Não sabia se achava aquela proteção toda uma benção ou uma ameaça. Mas confesso que tinha mais medo do coronavírus do que dos homens-bomba. Medo entre aspas, né? Afinal, se saí de casa, peguei aviões, cruzei aeroportos e fui me enfiar no sul da Ásia, cadê o medo? Não é fácil de explicar.

Cada um é um pequeno carnaval.

O Paquistão surgiu das costelas do Império Britânico. Desde a sua independência em 1947, comeu o pão que o diabo amassou. Primeiro foi o trauma da Partilha, quando houve genocídio dos dois lados da nova fronteira indo-paquistanesa. Milhões de hindus e muçulmanos num olho por olho, dente por dente. Em 1971 foi a vez do país se quebrar em dois, quando o Paquistão Oriental virou Bangladesh. Em seguida vieram guerras na Caxemira, golpes militares, explosão demográfica e a influência da Arábia Saudita com a invasão do vizinho Afeganistão pelas tropas soviéticas em 1979. Como se não bastasse, o Paquistão deu abrigo a Bin Laden enquanto recebia milhões de dólares dos EUA para servir de base para ataques ao Talibã. Lugarzinho complicado, não? Isso que nem entrei em detalhes.

Longe de ser um destino de férias, o Paquistão tornou-se atraente por ser um lugar que eu ainda não conhecia e que estava aberto a turistas brasileiros (no fim de janeiro, com a descoberta da variante brasileira do coronavírus, isso mudou). Depois de meses de viajonite aguda, qualquer possibilidade de banhar-me em ares exóticos passou a soar interessante, como um prêmio de consolação. Munido de seguro saúde, máscaras, tubos de álcool gel e um bom amigo, fui explorar Islamabad, Rawalpindi e Lahore.

Pra que sentar dentro?

Existem lugares idílicos por aquelas paragens. Florestas verdejantes, vales com lagos azuis e montanhas de picos nevados. Várias das montanhas mais altas da Terra estão no Paquistão, sendo o K2 a mais famosa. Só que em janeiro todo o extremo norte está coberto por metros de neve. Não queria ir a Peshawar, na fronteira com o Afeganistão, para um dia, se possível, poder voltar a Nova York sem problemas na imigração em JFK. Já no sul, a enorme cidade de Karachi, o coração econômico da nação, tem uma reputação duvidosa de cidade violenta e congestionada. De comum acordo com meu amigo, escolhemos a cidade mais nova, Islamabad, e uma das mais antigas, Lahore, para nosso Pakistan masala tour.

Hoje o Paquistão é uma república islâmica. É uma democracia de fachada, onde quem manda de verdade é o exército, que também controla a atividade econômica. O primeiro-ministro chama-se Imran Khan. Ele foi o capitão do time nacional de críquete e herói nacional. De família rica, morou em Londres, casou-se com a socialite Jemima Goldsmith e era da pá virada até resolver entrar para a política num afã de consertar o inconsertável. Para isso, separou-se de sua segunda esposa, a jornalista paquistanesa Reham Khan, que escreveu um livro bombástico sobre ele, e hoje é casado com a “Fantasma”, sua guia espiritual que o tirou do mau caminho. A elite liberal do país nunca viu a cara da primeira dama, pois como é devota, cobre-se com panos.

Em Islamabad visitamos a modernista mesquita Rei Faisal, presente do rei da Arábia Saudita. Fomos também ver o pôr do sol no Monumento Paquistão, onde éramos os únicos estrangeiros e fomos solicitados para participar de fotos de família e vídeos de Tik-tok. Entramos no Museu Étnico Lok Virsa e almoçamos num restaurante onde estava acontecendo um casamento, ao ar livre, ainda bem. Mas a falta de máscaras e a aglomeração nos surpreenderam. Gostamos mesmo do Monal, um restaurante gigantesco no topo das Montanhas Margala com vista panorâmica da cidade, ar puro e macacos. Subimos de táxi, que precisou parar algumas vezes no acostamento para colocar água no radiador, mas descemos a montanha a pé, por uma trilha na mata que nos levou diretamente para o bairro mais pobre da cidade, onde ninguém nem deu bola pra gente.

A Mesquita Faisal em Islamabad

Cheia de gente, o tempo todo. Na verdade tem gente o tempo todo em todo o Paquistão

Separamos um dia para ir até Rawalpindi, uma cidade bem maior e mais antiga do que Islamabad, que fica a 30 minutos de carro do hotel, no Paquistão verdadeiro. Basta passar por um viaduto que tudo muda. De repente as ruas se encheram de gente, de riquixás, de motocas, de ambulantes e de um barulho ensurdecedor. Há motocicletas carregando famílias inteiras e crianças correndo na contra-mão, um caos. Para nós, turistas ocidentais sedentos de clichês, tudo era exótico e fotogênico. O taxista nos atentou para certas construções em ruínas que chamou de casas hindus. Descobrimos serem as casas deixadas pelas famílias que fugiram para a Índia em 1947 durante a Partilha. Boa parte da cidade antiga é de casas hindus.

Notei que as pessoas só se davam conta de que éramos turistas quando viam as nossas máquinas fotográficas e que estávamos de máscara. Caminhamos, tiramos fotos e chegou um ponto em que deu. Vimos um cinema com filmes eróticos guardados por seguranças armados. Desconfiamos que vendiam bebidas alcoólicas em garrafas de refrigerante, já que o álcool é proibido em todo o país. Passamos por lojas de armas onde você pode comprar um kit mujahedin para ir brincar de bangue-bangue no Afeganistão. Ficamos felizes em voltar à nossa fortaleza Marriott e pedir room service.

Era temporada de tangerinas e o suco é cheio de vitamina C

Perceba que a cenoura no Paquistão tem cor de beterraba

Apesar de ter sido fundado em 1947, a história do Paquistão é antiquíssima. O vale do rio Indo é um dos lugares onde as primeiras civilizações surgiram. Mohenjo Daro, uma delas, foi construída na mesma época das Pirâmides do Egito e tinha sistema de esgoto e água encanada. Devia ser mais limpa do que muitas cidades do Paquistão atual. Há também templos budistas e hindus, fortalezas da Rota da Seda e de uma época bem anterior à chegada do Islã. Mesmo após o domínio islâmico sempre houve um sincretismo religioso muito grande, afinal, foram séculos de convivência entre os povos, inclusive sunitas e xiitas. Mas desde os anos 1980, sob a influência da Arábia Saudita e sua versão asséptica do islã, que as fissuras religiosas ficaram mais profundas. Hoje os conflitos entre sunitas e xiitas são mais violentos e numerosos do que contra as minorias cristã e hindu.

Monumento ao Paquistão

Estrada serpenteando montanha acima para chegar ao restaurante Monal e à vista panorâmica de Islamabad.

Ferveu o motor

Mas chegamos

E descemos pela trilha da montanha, com ar puro e silêncio, algo raro.

Casas abandonadas em 1947 pelas famílias que fugiram para a Índia e ocupadas por quem ficou

Açougue

No Paquistão fala-se Urdu e o alfabeto é parecido com o árabe.

Rawalpindi

Foi com isso em mente que adentramos a antiga cidade de Lahore, o centro cultural do país, depois de cinco horas de viagem em uma estrada pedagiada de quatro pistas, provavelmente uma das melhores estradas por onde passei. Lahore fica a 30km da fronteira com a Índia e sua história está mais ligada à Delhi e a Agra do que ao resto do Paquistão. Foi Shah Jahan, que encomendou o Taj Mahal, quem mandou construir boa parte do que ainda há para ver na cidade. Diria que só Lahore vale a viagem ao Paquistão. Contudo, o que eu mais queria ver era a cerimônia das bandeiras, que acontece todas as tardes na fronteira entre o Paquistão e a Índia com uma torcida organizada cantando de cada lado da cerca. Infelizmente a covid arrasou com meu sonho e vou ter que voltar um dia para ver os guardas em seus turbantes chegando milímetros do nariz um do outro, como se fossem pavões brigando por território.

Cartazes de cinema em Rawalpindi

Lahore tem uns 12 milhões de habitantes e é enorme. Tem uma parte onde moravam os ingleses, com ruas chamadas The Mall, Canal Road, Egerton Road e Charing Cross. Tem Gulberg, a zona nobre com centros comerciais e torres de escritório. E tem o resto, um amálgama de gente amontoada, viadutos e vias expressas. O ar é pesado. Os motores são a diesel, a energia elétrica é de carvão e no inverno não chove. Tudo é meio acinzentado e até as folhas das árvores têm poeira. Há que fazer vista-grossa para esses detalhes se quiser absorver qualquer romantismo de estar numa das cidades mais históricas do sul da Ásia. Isso fica mais evidente na Cidade Murada e nos Jardins Shalimar, ambos patrimônio cultural da UNESCO. Encontramos um restaurante com vista para o pátio da enorme mesquita de Lahore de onde vimos a chamada do muezim no final da tarde. Foi um momento de olhar ao redor e pensar: que sorte que tenho de estar aqui e agora.

Lahore Mosque

Jantar com vista

Selfie. A ferida no nariz é de tanto usar máscara. Note as orelhas abanando de leve também.

Cidade Murada de Lahore

Mas em Lahore a viagem começou a estressar. Para acessar qualquer parque, monumento ou restaurante, era preciso atravessar mares de gente, todas sem máscara. O hotel estava lotado, com aglomerações por todos os lados, inclusive no bufê de café da manhã. O medo de pegar covid e ter que ficar 14 dias de quarentena por ali me arrepiava. Estava adorando a viagem, mas queria embarcar são e salvo no dia marcado. Quando fomos fazer o exame de PCR dois dias antes do embarque, descobrimos que a Emirates tinha cancelado os voos para o Brasil. Bateu um desespero. Sim, viajar na pandemia tem disso. Era dia 29 de janeiro. O Paquistão acabava de fechar as fronteiras para brasileiros e a Emirates nos disse que poderíamos embarcar para o Brasil no dia 13 de fevereiro, inshalá. Como assim, inshalá? Conseguimos pelo menos desdobrar a passagem e embarcar para Dubai, que ainda nos deixava entrar.

Queria ter visto isso!

Ruas da cidade antiga de Lahore

Edifícios coloniais

Londres ou Lahore?

Meu amigo tinha compromissos de trabalho no Brasil e precisou comprar uma nova passagem via Etiópia. Eu, como trabalho remoto e não tenho nem filhos, nem marido, nem esposa, pude ficar em Dubai na casa de uma amiga esperando o inshalá do voo no dia 13.

Aproveitei para conhecer lugares dos Emirados Árabes que ainda não conhecia e prometo escrever a respeito em breve. Cheguei a pensar em ficar mais tempo por lá, visto que a situação no Brasil estava se deteriorando rapidamente. Mas em época de pandemia, nada melhor do que a casa da gente. A viagem serviu como um consolo ao viajante atracado no porto há meses.

Jardins Shalimar

PARA SABER MAIS

Antes de viajar, li bastante sobre o Paquistão. É uma tradição minha ler romances, História e não-ficção sobre o destino que vou explorar.

Salman Rushdie: Os Filhos da Meia-Noite (ficção)
Kim Ghattas: Black Wave (não-ficção)
Declan Walsh: The Nine Lives of Pakistan (não-ficção)
Fatima Bhutto: Songs of Blood and Sword (não-ficção)
Aatish Taseer: The Once and Future Imran Khan (reportagem da revista Vanity Fair)

DETALHES

Brasileiros podem pedir visto de entrada online. O processo leva até 7 dias úteis e custa 35 dólares

Há voos frequentes e diários para Islamabad, Lahore e Karachi de Doha, Dubai, Londres e Istambul

O Paquistão tem mais de 220 milhões de habitantes, 98% muçulmanos, 80-90% sunitas.

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