Coronadays 03.05.2020

Carta recebida de um penfriend da Síria quando eu vivia em Orlando, EUA.

??Maio se abriu. Março foi ontem. Mais um feriado passou. Todos os dias são iguais. Só noto a passagem do tempo nas folhas que estão amarelando e nas curvas das tabelas do coronavírus. Até mesmo as notícias estão dando círculos. Sobe a Bolsa, surge uma vacina promissora. Acaba um lockdown ali, começa outro acolá. Cai a Bolsa. Bebemos detergente.

Eu mantenho minha rotina, apesar de tudo. Acordo cedo, medito, arrumo a cama. Tomo banho, faço a barba, me visto. Preparo o café, lavo a louça. Tenho medo de “perder o controle” se não fizer isso. Sento para ler os emails, ver como estão as finanças da Pulp e se o mundo já acabou. Me prometo que vou ficar apenas alguns minutos lendo notícias, já que minha lista de afazeres mostra que tenho que estudar uma hora de alemão, tenho que praticar caligrafia de um novo caractere chinês e fazer uma das aulas online nas quais me inscrevi: “Difusão da língua italiana pelo mundo” e “Conceitos Políticos”. Quando me dou conta, já é hora de almoçar. As notícias me tragaram. Parecem me levar para um buraco negro, sem saída. Um link leva a outro, que leva a outro, que leva a outro. Tem algumas coisas muito boas em meio a muito lixo e histeria.

E assim sigo emendando dias em semanas, lendo mais notícias do que é saudável e estudando menos do que gostaria. Chegou a um ponto em que resolvi desligar o celular e ficar um dia inteiro sem computador. Abri minha lista de coisas a fazer ao longo da vida e tinha lá: ver se a filmadora de 1988 ainda funciona. Faltava um cabo para poder ligá-la à tv, que entrou na lista de coisas para comprar nos dias em que saio de casa. Fui para o item dois da lista que era: abrir as caixas de cartas recebidas ao longo da vida.

Não sei se já contei que sou um acumulador. Tem certas coisas que não consigo jogar fora. Cartões de embarque, por exemplo. Tanto que ainda faço check-in no balcão para ganhar a versão em papel (não em voos domésticos, com aquela tirinha de papel de fax horrível). Tenho uma caixa cheia deles, junto com chaves de quartos de hotel (em formato de cartão de crédito), passagens antigas (que vinham em blocos de 4, com papel carbono vermelho) e cartões de visita de restaurantes. Mas o “suco da goiaba” da minha acumulação são quatro caixas tamanho médio, guardadas no fundo de um armário, com todas as cartas que recebi ao longo da vida. Elas estão em ordem alfabética de remetente e me dão uma nostalgia gigantesca cada vez que as vejo.

Houve uma época em que eu escrevia muitas cartas. Eu tinha penfriends espalhados pelo mundo todo. São amigos que conhecia por cartas. Meus amigos da escola também me mandavam cartas quando iam de férias para o Rio ou Santa Catarina. Recebia cartões de meninas apaixonadas. Infelizmente os dos meninos queimei por medo da Inquisição. Tenho tudo guardado para um curador fazer a exposição da minha vida. Quando fui morar fora em 1994, antes de sabermos o que era email, minhas atividades epistolares explodiram. Sempre fui figura marcada nas filas dos correios. Devo ter gastado uma minifortuna em envelopes e selos. Meus amigos, parentes e penfriends rechearam minha vida de notícias via cartas e cartões postais. Imagino que deva existir a mesma quantidade de cartas escritas por mim (nunca deixei de responder uma sequer), mas ao invés de arquivadas em ordem alfabética em um único armário, encontram-se perdidas em gavetas asiáticas, arquivos europeus e porões brasileiros. Se sobreviveram ao tempo.

Antes de seguir adiante com a história, devo fazer outra confissão. Eu fui (e de certa forma ainda sou) viciado na sensação física de receber cartas. Nos idos de 1988, quando tinha duas penfriends que marcaram a minha vida, uma na Finlândia e outra na Turquia, eu chegava da escola e corria para ver a caixa de correio. Meu coração quase pulava da boca quando tinha algo me esperando. Era como se o mundo viesse até mim. Adrenalina pura. Aquele envelope tinha nascido num vilarejo finlandês ou turco, onde uma menina que me achava legal contava da sua vida no papel, colocava tudo nos correios, às vezes com fotos ou recortes de jornal, e aquela carta vinha voando até a minha casa!!! Ao lê-las, a serotonina me saciava, por isso escrevia tanto. Hoje em dia, para manter o vício, mando cartas e postais para mim mesmo quando viajo.

Pois bem. Algumas pérolas que encontrei nas tais caixas foram as cartas de rejeição que tive quando buscava meu primeiro trabalho depois de formado em hotelaria. Foi um choque de realidade interessante para um menino de 23 anos que achava que, por ter se formado em primeiro lugar em uma das melhores escolas de hotelaria do mundo, teria todas as portas abertas, do Nepal às ilhas Fiji. Foi um não atrás do outro, que pelo menos chegavam em grande estilo; envoltos em envelopes, selos e carimbos. Mas o que me deu um curto-circuito no dia em que as reli, foi relembrar do meu desespero em encontrar um trabalho aonde quer que fosse, do que quer que fosse, desde que fosse bem longe do Brasil, de Curitiba e da minha família.

Carta de rejeição de Bora Bora

Carta de rejeição de Bangkok

Essa quarentena tem me feito abrir as caixas da memória e reviver lembranças e sensações das quais já tinha esquecido ou guardado bem no fundo do coração. Relembrei por que tive que sair de Curitiba com 19 anos, por que dei sumiço em algumas cartas de assinaturas masculinas, por que fui um adolescente tão ansioso, por que tinha tanto medo, por que um diploma seria minha salvação. Cresci me achando estranho, defeituoso, sujo. Cresci achando que jamais seria feliz em Curitiba, província onde todo mundo se conhecia e se metia na vida alheia, sem nem um modelo que eu pudesse seguir, me espelhar ou me inspirar. Em 1994 eu me sentia “the only gay in the village”.

Comprei o cabo que faltava para ligar a filmadora antiga à tv dois dias depois de abrir a caixa das cartas. Que volta ao passado! Ri muito das coisas que fazia com amigos do colégio, amigos até hoje. Vi que sou mais velho em 2020 do que meus pais eram no dia em que os filmei. Vi meus trejeitos de adolescente, minha voz esganiçada em algumas cenas (sempre fui dos bastidores, quase sempre eu que filmava). Relembrei de tanta coisa em fast forwards e rewinds daquelas fitas gravadas entre 1987 e 1989. Vi como minha vida sempre foi intensa, cheia de gente em volta, de viagens, casa na praia, fazenda. Tios, tias, primos, amigos, amigas. Mini-buggy, morey-buggy, glitter, criatividade. Sabia que teria grandes desafios pela frente. Me preparava para o dia em que seria expulso de casa. Teria que criar uma nova vida longe daqui. Minha avó paterna dizia que se eu não me casasse e tivesse filhos, seria infeliz para sempre. Imagine isso na cabeça de um viadinho de 16 anos. Mesmo assim soube deixar tudo isso de lado e viver a vida enquanto não era a hora de lidar com tais problemas.

A vida é rio. Caudaloso, cheio de meandros e confluências. Não volta nunca para trás, segue sempre adiante até desaguar em mar. Só volta ao ponto inicial se transformado em chuva. O adolescente tinha razão para aquela sensação de pesar na alma, seria complexo crescer com aquele segredo. O ponto positivo é que aprendi a ter paciência, a dar tempo ao tempo. Fui rejeitado para o emprego em Bora Bora, acabei em Londres, onde me apaixonei (pela cidade). E não fui expulso de casa, pelo contrário. Demorou mas as coisas se encaixaram. Confesso ainda ter resquícios de auto-preconceito e auto aversão, mas viva a psicanálise, a literatura, a comédia e principalmente os amigos.

Fechei as caixas, guardei a filmadora. Chega. Deu material suficiente para escrever essas linhas e reacender o contato com a Finlândia. Agora a espera é outra, as questões são outras, os problemas são outros. Mas tempo e paciência seguem sendo o melhor, e talvez únicos remédios para esse novo mundo que vem se desenhando cada dia à nossa frente. Deu certo na adolescência e juventude, vai dar certo agora nos anos dourados.

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