Encomendas

?? Chovia tanto que achava ser culpa sua. Como poderia cair tanta água? Mesmo com o ar condicionado ligado, o lençol, os travesseiros e as toalhas no banheiro estavam úmidos. Sufocava naquele quarto de hotel e não conseguia prestar atenção nem na tv, nem em nada. Poderia sua cabeça explodir de tanto confabular? Lembrou-se com certo sarcasmo e nostalgia dos primeiros dias naquela profissão. Da excitação dos primeiros voos, de tirar fotos nos pontos turísticos da Europa, da África. De como marcava o mapa com um pin vermelho cada cidade que conhecia. Agora estava ali, agonizando num quarto mofado.

Gostava do trabalho. Servia bebidas e demonstrava o uso do cinto de segurança. Comandava certa autoridade com os passageiros. Desfilava lindamente pelos aeroportos com seu uniforme bem cortado e suas colegas esguias. Exibia um bronze constante, afinal era sempre verão em algum lugar do planeta. Não ganhava muito, mas curtia os pequenos prazeres. Até conhecer Stephan.

Foi num voo para Dar es Salaam, com escala em Nairóbi. Eram colegas de trabalho e voavam juntos pela primeira vez. Passaram a tarde bebendo na piscina. Riam à toa e os dentes de Stephan reluziam num branco alvejado. Quando o teor alcoólico da conversa atingiu altitude de cruzeiro, Stephan olhou bem para ele e perguntou se não sentia falta de dinheiro. Claro, disse, automaticamente, sem entender muito bem a pergunta. No fundo, as questões financeiras não causavam turbulências em sua vida, mas querer mais a gente sempre quer, pensou. O colega chegou mais perto, baixou a voz e sussurrou que fazia parte de um grupo seleto de comissários que tinham renda extra e poderia incluí-lo no grupo. Tinha ido com a sua cara.

O mundo é cheio de desequilíbrios e aquele grupo se propunha a monetizá-los. Cigarros da Tailândia vendidos em Estocolmo, eletrônicos de Hong Kong entregues no Rio de Janeiro, artigos de luxo dos free-shops caribenhos valiam ouro em Xangai. Era uma ciência a elasticidade das regras alfandegárias. Por uma comissão de vinte por cento, Stephan abriria as portas. Ele aprenderia rápido. Bem rápido.

Acertavam contas a cada dois meses. Recebia as dicas pelo celular de acordo com os voos que tinha em sua escala. As trocas eram ágeis e os “clientes”, educados. Sentia um certo frisson ao cruzar fronteiras com a mala cheia de celulares. Ou meias-calças. Sabe quanto pagam por elas em Oslo? Quando passou a se sentir confortável com as artimanhas do negócio, resolveu burlar as regras do grupo. Criou, solitariamente, um mini-departamento farmacêutico para a demanda reprimida por pílulas e ervas. Escondia a mercadoria com esmero na barra da calça ou no forro do quepe do uniforme.

Tinha um apartamento com vista para picos nevados e uma conta de banco invejável. Dizia para si mesmo que sua boa fortuna era, em parte, porque ajudava as pessoas. Pensava nas grandes empresas da bolsa de valores que usavam os mesmos desequilíbrios globais para gerar ainda mais confusão. Mão de obra vietnamita, matérias-primas da África, dinheiro em paraísos fiscais. Ele, ao contrário, com seu trabalho de mascate, deixava o mundo mais plano. Armas e munição ele se negava a transportar, mesmo quando ofereciam muito dinheiro. Deixava para as camareiras uma nota de cem debaixo do travesseiro. Pensava ser uma forma justa de transferência de riqueza.

Já não precisava mais do Stephan nem do grupo. Em seu one-man-show, fez contatos em Cartagena para clientes australianos. Se concentrava no filé enquanto os colegas disputavam os ossos. Pensava em assuntos aleatórios enquanto servia sobremesa para a Classe Executiva. Entre as filas 5 e 6 sentiu um cheiro de queimado. Olhou pela janela e viu uma labareda na turbina esquerda. Por uma fração de segundo achou que era mentira, que aquilo só acontecia nas sessões de treinamento. Então lembrou-se de que seu verdadeiro trabalho, no fundo, era lidar com tais situações. Avisou o piloto e os colegas, guardou o carrinho com as bolas de sorvete que começavam a derreter, acalmou a senhora do 4C que tinha um terço na mão e em poucos minutos a cabine estava pronta para o pouso de emergência. Mal teve tempo de ver onde é que aterrissariam.

Só se deu conta da gravidade de sua situação quando a mala apareceu na esteira do terminal de Jacarta. Ele e o resto da tripulação teriam que passar a noite na Indonésia. Eles e os vários saquinhos do mais fino produto colombiano, que jamais poderia pisar num lugar daqueles. O avião, sem labaredas, deveria estar entrando em espaço aéreo australiano. Agora ele sentia-se envolto pela umidade tropical e pelo cheiro de mofo presente em tudo. Mer-da, pensou ao assinar o cartão de imigração que dizia, claramente, em negrito vermelho e fonte times new roman tamanho 16, que a Republik Indonesia pratica a pena capital para traficantes.

Sentiu um alívio ao ver que não precisaria passar na alfândega, talvez só amanhã, na hora de embarcar. Trancou-se no 413. Que número ruim, pensou. Pelo menos ficava no fundo do corredor. Escutava as trovoadas, mas a tempestade acontecia na sua cabeça. Ligou a tv, tomou um banho e notou que havia mofo nos cantos dos azulejos do banheiro. Até agora a sorte tinha estado do lado dele. A turbina queimando, o pouso de emergência, a passagem incólume pelos oficiais. Mas também todas as outras encomendas que tinha levado e trazido ao longo de anos de pousos e decolagens. Sim, tinha sorte e isso o encheu com uma coragem minguada. Pensou em jogar as ilegalidades na privada e dar um descarga bem longa. Só que sem entregar a encomenda, não receberia o combinado. Poderia até perder uma falange, um dedo inteiro, quem sabe ser largado num beco. Queima de arquivo. Por outro lado, passar o resto da vida numa cela em Java esperando clemência seria muito pior.

Foi quando surgiu uma ideia. Ela veio devagarinho, desviando o turbilhão de sua mente até se cristalizar com a melhor solução para aquele dilema. Passou a mão no telefone e pediu uma garrafa de champanhe e dois hambúrgueres com uma porção extra de bacon. Se era para fazer aquilo num país islâmico, que fosse regado a pecado. Abriu a garrafa com um plop da rolha e um jarro de Fórmula 1. Meteu ali dentro todo o pó. Nos hambúrgueres, espalhou a erva e cobriu com as fatias de bacon. Bom apetite, disse em voz alta como se tivesse mais alguém ali com ele. Em pouco tempo a umidade o abraçava e o mofo cobria seus pés. Cresciam folhas tropicais em sua pele e uma luz às vezes violeta, às vezes alaranjada, iluminava o quarto inteiro. Sentou-se no trono dourado que surgiu ao lado da cama e decolou sem nem mesmo apertar os cintos.

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