Escrevi esse relato de viagem há bastante tempo. A situação no Sudão segue bastante complicada. Quanto mais leio sobre os países da África, mais descubro que os conflitos atuais nada mais são do que uma continuação de questões mal resolvidas do passado, muitas deles criadas pelos colonizadores europeus. O texto é mais longo do que o das News mensais, mas foi uma viagem longa e tinha muito para contar.
“Preciso te contar sobre a incrível viagem de quase 10 dias pelo Sudão no final de março de 2019. Há anos que sonhava em conhecer o país, mas não é um destino tão simples e fácil de visitar. Achava que o visto era difícil, que o país era fechado, perigoso, etc. Na verdade, tudo isso era desculpa para postergar a viagem, afinal, visto difícil é o americano, e perigoso é algo bem relativo hoje em dia.
Sabia que havia pirâmides, que os egípcios haviam colonizado os núbios, que o Mar Vermelho era ideal para mergulhar (apesar de eu não gostar de ficar debaixo d’água), que se falava árabe, que o país vivia em crise (guerra civil, guerra no Darfur, secessão do Sudão do Sul) e que Cartum, a capital, é onde os rios Nilo Azul e Nilo Branco se encontram.
A título de curiosidade, escrevi um e-mail para a Embaixada do Sudão em Brasília perguntando sobre o visto de turista e, pasmem, era facílimo. Do tipo, mande o passaporte, pague a taxa e pronto. Então, fui atrás de alguma forma interessante de visitar e encontrei um tour de uma semana com a Dragoman, uma empresa inglesa que organiza viagens de aventura por terra mundo afora. Eles ofereciam um circuito por quase todo o norte do país, acampando no deserto e viajando em um caminhão adaptado. Topei, apesar de nunca ter armado uma barraca na vida (no sentido literal, é claro).
Com o tour pago, visto emitido e passagem comprada, começaram a chegar notícias de tumultos e protestos antigoverno por todo o Sudão. O governo estava com a mão um pouco pesada, prendendo gente, matando alguns. Mas botei fé no meu anjo da guarda e deixei a decisão de ir ou não nas mãos da Dragoman. Se eles cancelassem a viagem, é porque a coisa estava realmente feia. Visto de longe, através do filtro das notícias, o mundo todo parece hostil. Sabia bem disso. Apostei na sorte e uma janela se abriu, pois durante a viagem não houve protestos. Os sudaneses estavam se mobilizando para um grande protesto no sábado, dia 6 de abril. Dia 11, o presidente Omar Bashir já não era mais presidente e eu já estava longe.
Na lista que recebi com as coisas essenciais para levar na viagem, só cumpri com o saco de dormir, que coube na pequena mala de cabine que tenho. Odeio mochila e só levei o que coube na mala de mão. Por isso, não tinha lugar para um colchão, lanterna (para que existe iPhone?), canivete (não dá para levar na mala de mão), lençol de saco de dormir, botas de caminhada e outras frescuras. Fui na raça, kkkk, mas levei um travesseiro inflável, lenços umedecidos, um pacote de paçoca, um pedaço de queijo parmesão (dica do fotógrafo Sebastião Salgado) e muita vontade de fazer dar certo.
Em uma bela tarde de março, com um pôr do sol alaranjado, pousei no aeroporto de Cartum. Parecia uma criança indo para a Disney pela primeira vez de tão excitado que estava. Fui um dos primeiros a desembarcar e, para a minha surpresa, havia alguém me esperando. Cortesia da Dragoman. Adoro chegar nos lugares mais exóticos e ver alguém com uma plaquinha com o meu nome no aeroporto. Quase nunca tem ninguém, mas sempre dou uma olhada, vai que. Desta vez, era alguém me esperando antes mesmo de passar na imigração. Fomos juntos para o guichê e em menos de cinco segundos o guarda de fronteira me olhou, olhou meu visto e falou: isso aqui é falso. Bem, ele falou isso em árabe para o meu mais novo amigo, que traduziu e me perguntou onde é que eu tinha arranjado aquilo. Na Embaixada do Sudão no Brasil. No good. Wait here. A fila atrás de mim era interminável e por isso me levaram para um lugar de espera, onde os guardas emitiam vistos para quem chegava com cartas de recomendação, obtidas com meses de antecedência. No meu caso, eles diziam que meu visto era falso porque estava colado com um plástico adesivo em cima e não brilhava quando passavam a página por aqueles sensores ultravioleta. Eu, como sabia que tinha pedido o visto na Embaixada e que não era falso, talvez fosse um visto velho, ou vencido, ou outra coisa, fiquei bem tranquilo. Minha única preocupação, até aquele momento, era com a minha mala com o meu saco de dormir e com as paçocas. Deviam estar sozinhos na esteira, rodando, rodando, sem ninguém para socorrê-los.
Para não prolongar a história do visto, resumo que fiquei três horas na tal zona de espera, que quiseram me deportar, que tive que ligar para a Embaixada em Brasília (aleluia Skype), que o dono da agência que representa a Dragoman no Sudão teve que ir me resgatar, que fui interrogado, que meu visto dizia que eu estava indo para o Sudão em missão de trabalho e não a turismo (o visto vem escrito em árabe) etc. e tal. Se não fosse o meu novo eu zen-meditador, teria tido um colapso nervoso ali mesmo. Mas eu apenas ia de um lado para o outro, sorria, respondia às perguntas, perguntava por minha mala e torcia para dar certo, pois não queria ter que voltar para Dubai, ou pior ainda, para São Paulo.
No final, fui liberado, ganhei uma carona para o hotel e 250 libras sudanesas de adiantamento para poder jantar (cerca de 5 dólares). Também saí no lucro, pois paguei R$ 160 pelo visto aqui no Brasil. Para fazer na chegada, além de muita antecedência, precisaria de US$ 100. Com um ar de vitória e de vítima da burocracia internacional, saí jubilante do terminal. Finalmente, estava no Sudão. Comemorei no restaurante Castelo da Síria, com babaganush e tabule.
Na manhã seguinte, às 10 horas, havia encontro marcado com todo o pessoal da viagem. Éramos uns 14 turistas mais o casal de guias, Louise e Nick. Eu era o único exótico em meio a ingleses, canadenses, australianos e um americano. Mas todo mundo era gente boa e hiper-viajado, com ampla experiência em acampamentos no Mali, no Suriname e no Vietnã. Eu era o único virgem. Exótico e virgem, com a menor bagagem de todos, que a olhavam admirados e diziam: is that all (é tudo)?
Depois do encontro, fui explorar a cidade, sob um sol de 45 graus e muitas barricadas do exército ao redor dos prédios governamentais. Quando cheguei na beira do Rio Nilo, não dava nem para saber se era branco ou azul. Ele era marrom. Uma nave espacial estacionada numa das margens dizia ser o Hotel Corinthia e fui me refugiar nela. Essa rede de hotéis pertence à família de Muammar Gaddafi, o ex-ditador da Líbia. Passei o resto da tarde no sofá do lobby, vazio que estava. Tomei uma limonada para não me mandarem embora, li, escutei música, escrevi, cochilei e quando vi que o sol estava quase se pondo, voltei para o meu hotel e me joguei na piscina. Dividi o quarto com o Pete, um senhor inglês barrigudinho que roncou a noite toda.
Na manhã seguinte, partimos assim que o dia amanheceu. Nosso caminhão chamava-se Xara (lê-se Sara). Era alaranjado, tinha lugar para 24 pessoas, então, em 14 nós nos espalhamos bem confortavelmente. Seria nossa casa pelos próximos dois mil quilômetros. Acho que todos estavam bem empolgados, pois saímos de Cartum com metade dos corpos para fora da janela, filmando tudo e acenando para a população, que nos via como verdadeiros E.T.s.
O Sudão é um grande deserto. Ele muda de cor e de textura. O Nilo serpenteia pelo centro do país. Ao longo das margens, o mundo é outro, com plantações, oásis e pequenas cidades. Se não fosse o rio, acho que o Sudão (nem o Egito) existiriam.
Nossa primeira noite foi ao lado de Old Dongola, um complexo de ruínas de um povo cristão, chamado de Makuria. A região teve seu auge no século X d.C. e até mercadores genoveses moravam ali. Apareceu um escorpião enquanto jantávamos. Dividi a barraca com David, um senhor inglês de 75 anos. Éramos os dois únicos que toparam dividir barraca e que não roncavam. Quem roncava ou levava sua própria barraca ou ia armar acampamento longe do caminhão. Dormi um sono tão profundo que nem me mexi.
O dia seguinte foi quase totalmente na estrada. Chegamos no fim do dia em Wawa, não muito longe da fronteira egípcia. Passei a viagem contemplando o horizonte. Jantamos macarrão à bolonhesa (para mim, sem bolonhesa) que estava bem ruim, mas o grupo da cozinha neste dia estava um pouco confuso. Louise nos dividiu em grupos. Cada dia um dos grupos cozinhava para todos.
Assim que acordamos, fomos até a beira do Nilo e cruzamos em um bote para a outra margem. Visitamos o incrível templo de Soleb, que marcava a fronteira mais ao sul do Império Egípcio. Até o famoso faraó Tutancâmon passou por ali. Um enxame de minúsculas moscas nos atacou sem clemência. Elas surgiam sempre de manhã, com a umidade próxima ao rio. Voltamos para o acampamento, tomamos café da manhã e lá fomos nós estrada afora.
Os almoços sempre eram simples e rápidos. Parávamos em algum lugar onde houvesse sombra ao lado da estrada. Em uma mesa desmontável, cortávamos tomates, pepinos e cebolas para fazermos sanduíches em pão árabe, que sempre comprávamos fresco nos povoados. Fiquei bem feliz em ver que por todos os lados havia pão, frutas variadas, ovos e mercadinhos. Além de mostrar que o Sudão não estava com falta de comida, tínhamos acesso a produtos frescos diariamente. Os jantares eram um pouco mais elaborados. Usávamos o fogareiro que trazia o caminhão. Montávamos duas mesas de apoio e sempre tinha arroz e alguma proteína que o grupo do dia preparava. No dia do meu grupo fizemos arroz com lentilhas. Eu adorei. O pessoal não ficou tão entusiasmado, diziam que dava gases, mas comeram, afinal não havia alternativa.
Terminamos as noites sempre com chá ou café em volta da fogueira, contando histórias de viagem. Eu aproveitava esses momentos para caminhar para a escuridão, tirar a roupa e fazer o número 2 de cócoras, sem ninguém para me encher o saco. Era muito engraçado, pois eu, do escuro, via o pessoal em volta da fogueira e sabia que não conseguiam me enxergar, peladão no meio do nada. Enterrava o trabalho e cobria de areia. Dava a bênção aos lenços umedecidos, que serviam de banho de gato nas manhãs também.
Depois de Wawa e Soleb, chegamos em Karima e ficamos ao lado do Jebel Barkal, uma montanha enorme na beira do Nilo considerada sagrada. Em parte de seu interior, vimos pinturas egípcias. Escalamos a montanha para ver o pôr do sol. Ninguém do grupo se queixou, nem mesmo David, meu companheiro de barraca, e o casal de Norfolk, Lesley e Pete, ambos de 65 anos.
Antes de sairmos de Karima, passamos pelas pirâmides de Nuri e tivemos outro dia de muita estrada até a nossa chegada monumental às pirâmides de Meroe, o clímax da viagem. Estávamos só nós neste enorme sítio arqueológico e acampamos entre as dunas para podermos ver o sol nascer nas pirâmides. Do nada, surgiram vendedores de souvenir e muitas crianças. Até passeio de camelo dava para fazer. Já era meu quarto dia sem banho e estava tudo em ordem. Todos os dias checava os odores, passava toalhinha e penteava os cabelos. Como a atmosfera era bem seca, quase não suava, então as roupas duravam. Ninguém estava incomodado com isso, nem eu.
De Meroe, pegamos a movimentada estrada que liga Cartum a Port Sudan, no Mar Vermelho, por isso o progresso foi lento. Como o caminhão da Dragoman é inglês, Nick, que estava na boleia, ficava à direita, pois a mão no Sudão é como a nossa. Então eu, que estava no banco mais à frente, junto à janela, ficava para fora vendo se vinham carros e sinalizava com um "curti" ou "não curti" no espelho retrovisor para o Nick poder entrar na pista oposta e ultrapassar. Foi um alívio quando chegamos a um entroncamento e nosso guia local, o Assad, que viajou conosco o tempo todo, avisou que era hora de sair da estrada e seguir pelas trilhas na areia até Naqa e Musawwarat, dois templos no meio do nada, quase a meio caminho da fronteira da Eritreia.
O calor era abrasador e seguimos num areial por cerca de uma hora até chegarmos aos templos, que valeram muito a pena. Por sorte, encontramos umas acácias grandes onde paramos a Xara. O duro foi bancar o turista com sol a pino. Eu avistei umas camas de palha debaixo de uma choupana e por ali fiquei, depois de uma rápida incursão à la Indiana Jones nos dois templos. Um deles começou a ser escavado e renovado por arqueólogos da antiga Alemanha Oriental, que levaram algumas peças para o Museu Pergamon de Berlim.
O que descobri ali foi que o Sudão estava inserido nas rotas comerciais da antiguidade. A famosa Rota da Seda não era o único caminho entre o Oriente e o Ocidente. Havia dezenas de Rotas da Seda e pelo Sudão transitavam elefantes asiáticos, especiarias, incenso e outros produtos vindos da Índia através dos mercadores de Omã, Zanzibar e Iêmen. Chegavam a Roma, ao Cairo, a Constantinopla pelo Rio Nilo. Outra informação interessante é que nas pinturas da época, vê-se um mundo muito mais arborizado e cheio de animais, um contraste marcante com o deserto de hoje. Ou seja, mudanças climáticas contribuíram para a decadência dos povos que por ali passaram queimando árvores para fazer ferramentas de ferro, matando os avestruzes para comer e para usar a pele. O próprio Nilo era muito mais caudaloso há milhares de anos. E a gente não aprende!!!
Terminamos a visita e voltamos, via areial, para a estrada movimentada, já a caminho do Regency Hotel em Cartum. Meu maior sonho, já fazia alguns dias, era chegar no hotel e me jogar na piscina, tanto para me refrescar quanto para me limpar. Dito e feito. Assim que estacionamos na frente do hotel e nos deram nossos quartos (eu segui dividindo com o David, que não roncava), larguei a minha mala e corri para a piscina, que estava lotada de crianças, mas eu, naquela hora, era mais uma!
Imaginem o prazer de mergulhar depois de uma semana na secura do deserto. Ao sair da água, teve até ventinho para refrescar e arrepiar. Que delícia. Subi para tomar banho e, mesmo tendo ficado dentro de uma piscina, ainda tinha areia nos mais escondidos recônditos do meu corpo, sem falar na cabeleira, que depois do banho voltou a ser minguada. Fiz a barba e todos deram risada do meu novo look urbano.
No fim da tarde, fomos de van para Omdurman, a cidade geminada a Cartum, onde mora a maioria das pessoas. Todas as sextas-feiras há um encontro de dervixes, que são místicos dançarinos muçulmanos, como os que existem na Turquia. Eles entram em transe através de giros e mais giros. Descobri que grande parte da população do Sudão é muçulmana com raízes sufistas, ou seja, eles creem num islã místico. O espetáculo dos dervixes atrai muitos locais. Lembra muito as cerimônias do Candomblé aqui no Brasil. Tem muita batucada em volta de um grande círculo humano, e muita gente recebe bênçãos e entra em transe. Foi incrível estar ali em meio à multidão. Quando o sol se pôs, fomos jantar em um restaurante libanês. Estava rolando dois casamentos e música ao vivo.
Durante toda a minha estada no Sudão, não vi nenhuma manifestação. Conversei muito com o Assad, nosso guia local, que nos liberava a cada barricada do governo nas estradas (e foram várias). Tive conversas profundas sobre o país e sobre como os sudaneses estavam se mobilizando contra o regime de 30 anos de Omar al-Bashir. Segundo ele, até mesmo o exército estava de saco cheio. A corrupção é tanta que apenas o presidente e seu círculo mais próximo fecham negócios de exportação com a China e alguns poucos países. Ninguém prospera.
Os sudaneses, longe de serem um povo homogêneo, são de diversas etnias, já que o Sudão abarca terras no Darfur, Kordofan, Mar Vermelho, Saara e florestas tropicais ao sul. E isso o governo centralizador de Bashir queria que acabasse, islamizando e arabizando toda a nação. Como em muitos países islâmicos, a hospitalidade e simpatia da população são enormes. Eu falo cinco palavras de árabe e, por ter avó libanesa, me sinto um local por essas terras (kkkk) e vou puxando conversa. Com isso, vi que boa parte da população é bem instruída e que a maioria dos sudaneses tem menos de 30 anos.
Enquanto boa parte das pessoas que ficaram em casa, tanto amigos meus quanto dos companheiros de viagem, ficaram preocupadíssimas com a nossa falta de notícias (não havia wifi, graças a Deus), com medo de que fôssemos sequestrados por terroristas islâmicos, de que agentes do Eixo do Mal nos prendessem, de que não teríamos o que comer e outros medos que se aprendem no Facebook e no WhatsApp, nós estávamos curtindo o silêncio do deserto, as noites estreladas, a hospitalidade e gentileza dos sudaneses, o pão fresco, o chá com especiarias na beira da estrada, os chicletes egípcios hiper-doces que as crianças vendiam para nós e o simples prazer de explorar ruínas antiquíssimas sem um ônibus da CVC ou turistas chineses ao lado.
Eu já estava de volta ao Brasil quando as notícias da derrubada do governo começaram a pipocar pela internet. Ainda não se sabe o que será do futuro do Sudão; afinal, essas revoltas populares, que começaram na Tunísia e assolaram o Egito, a Líbia, e agora a Argélia e o Sudão, nem sempre resultaram em democracia e avanço econômico. Só desejo tudo de bom para essa gente que me recebeu tão bem e para esse país, tão grande e tão cheio de história. Foram 1.980 km de descobertas fascinantes. Gostaria de voltar um dia para ver o Mar Vermelho, conhecer Darfur, pegar o trem que liga Cartum a Atbara e, quem sabe, ver novos monumentos que estão para ser desenterrados por equipes de arqueólogos.”