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🇧🇷 Existe uma linha que separa o norte e o sul do Chipre. Ao contrário das linhas nos mapas, essa do Chipre é de ferro, cimento e arame farpado. Uma fronteira “dura” com o romântico nome de Linha Verde. A capital, Nicosia, fica exatamente no traçado da linha, que divide bairros, ruas e rios. De um lado fala-se turco. Do outro, grego. De um lado multiplicam-se as mesquitas. Do outro tocam os sinos das igrejas ortodoxas. Três passagens, abertas depois de muita negociação em 2008, permitem o tráfego de pessoas fluir lentamente de um lado para o outro.
Dividir um território não é coisa simples. Nunca é o resultado da incompetência ou da intransigência de uma única parte. São vários motivos, várias decepções, vários desencontros que resultam na separação. A História nos mostra que as brigas fraternais são as mais vis. Numa família que se esfacela, todos vão juntos ao fundo do poço. Alemanha, Iugoslávia, Índia, Coreia e Vietnã são alguns exemplos.
O Chipre sempre teve um lugar estratégico na História por estar justo ali onde termina a Europa e começa o Oriente Médio. Talvez seja essa posição geográfica que torne tudo tão complicado. Afrodite nasceu numa praia cipriota. Essa filha pródiga, de natureza ambígua, foi um sinal de que por ali haveria conflitos constantes onde desejos celestes e divinos são compartilhados com impulsos sexuais e físicos.
Pousei no aeroporto de Ercan, do lado turco. Somente voos da Turquia descem ali. Aluguei um carro de mão inglesa e dirigi até Nicosia, onde ficava a pousada Bougainvillea Garden. Da janela do quarto eu via as torres da mesquita principal, uma antiga catedral gótica e os arranha-céus do lado grego do muro. A cidade é compacta e as várias ruas e avenidas terminam de repente, de frente ao muro com arame farpado e placas de proibido fotografar. Deve ser difícil viver assim, mas para um turista de passagem, é fascinante.
Assim como Beirute no início dos anos 1970, Nicosia e as praias de Famagusta eram o destino do jetset internacional. Alguns traços daquele glamour permanecem em construções que pararam no tempo, tomadas por rachaduras, pó e ervas daninhas. O luxuoso Hotel Ledra Palace nada mais é do que um bunker das Nações Unidas. Uma terra de ninguém no meio da Linha Verde. Escutava os ecos daquele tempo. Conversas à beira da piscina. Amigos fazendo planos nas areias do Mediterrâneo, que não distingue gregos de troianos, muito menos cipriotas do sul de cipriotas do norte.
Tive a sorte de viajar acompanhado da escritora Elif Shafak, que me contou de maneira lírica e detalhada o que se passou através do livro “A Ilha das Árvores Perdidas”. Ri e chorei buscando a figueira e a taverna da história pelas ruas da cidade. Os personagens que não partiram durante a guerra civil e a partilha estão enterrados em valas comuns, descobertas pouco a pouco por uma comissão de paz entre ambos os lados. Fazer turismo em lugares assim é complexo. Até quando desbravar não é desrespeitar?
Tentei chegar perto do aeroporto de Nicosia, desativado desde que a coisa desandou. O terminal, com o design típico daquela época, segue ali. Como um relógio parado no tempo. Está cercado de barreiras militares, tanto do lado grego quando do lado turco. Por pouco não encalho o carro na lama de uma fazenda de cabras, o ponto do Google Maps mais próximo à pista.
Em contrapartida, a cidade de Famagusta foi reaberta para visitação. Me lembrou muito Pripiat, a cidade soviética ao lado da usina de Chernobil, na Ucrânia, onde todos os prédios estão prestes a desabar. Aluguei uma bicicleta, tão velha quando a cidade. Na praia havia turistas dançando e nadando no mar azul turquesa sem olhar para trás, para os hotéis decrépitos e luminosos quebrados de lojas que não funcionam desde 1974.
A animação dos turistas me lembrou dos restaurantes animados onde jantei, dos cafés cheios de gente conversando, dos mercados de antiguidades e souvenires. A vida continua. Podem erguer muros, a política pode ficar cada vez mais bizantina, os problemas mais complexos de solucionar. São lugares como Nicosia que mostram que viver o hoje é muito mais importante do que lembrar de 1974 ou esperar que um dia alguma coisa se resolva.
🇬🇧 There is a line separating north and south Cyprus. Unlike the lines on maps, this one in Cyprus is made of iron, cement and barbed wire. A “hard” border with the romantic name of Green Line. The capital, Nicosia, is located exactly on this line. It divides neighborhoods, streets and rivers. Over here, Turkish is spoken. On the other side, Greek. On one side, mosques multiply. On the other, Orthodox bells toll. Three border passages opened after much negotiation in 2008, allow people to trickle from one side to the other.
Dividing a territory is not a simple task. It is never the result of incompetence or intransigence of a single party. There are several reasons, disappointments and disagreements that result in separation. History shows that fraternal quarrels are the most vile. In a family that is falling apart, everyone goes rock bottom together. Germany, Yugoslavia, India, Korea and Vietnam are some examples.
Cyprus has always had a strategic place in History as it is right where Europe ends and the Middle East begins. Perhaps it is this geographical position that makes everything so complicated. Aphrodite was born on a Cypriot beach. This prodigal daughter, of an ambiguous nature, was a sign that there would be constant conflicts there, where heavenly and divine desires are shared with sexual and physical impulses.
I landed at Ercan airport on the Turkish side. Only flights from Türkiye land there. I rented a car and drove on the left, like in the UK, to Nicosia, where the Bougainvillea Garden Inn was located. From my bedroom window I could see the minarets of the main mosque, an old Gothic cathedral and the skyscrapers on the Greek side of town. The city is compact and the various streets and avenues end suddenly, in front of the wall with barbed wire and no photography signs. It must be hard to live like this, but for a passing tourist, it's fascinating.
Like Beirut in the early 1970s, Nicosia and the beaches of Famagusta were the top destinations for the international jet set. Some traces of that glamor remain in buildings that have stopped in time, taken over by cracks, dust and weeds. The luxurious Hotel Ledra Palace is nothing more than a United Nations bunker. A no man's land in the middle of the Green Line. I could listen to the echoes of that time. Poolside conversations. Friends making plans on the sands of the Mediterranean, which does not distinguish Greeks from Trojans, much less Southern Cypriots from Northern Cypriots.
I was lucky to travel accompanied by the writer Elif Shafak, who told me in a lyrical and detailed way what happened there in the book “The Island of Missing Trees”. I laughed and cried looking for the fig tree and the tavern in the story through the streets of Nicosia. Characters who did not leave during the civil war and partition are buried in mass graves, discovered little by little by a peace commission between both sides. Tourism in places like this is complex. Can trailblazing be disrespectful?
I tried to get close to the Nicosia airport, decommissioned since things went sour. The terminal, with the typical design of the 1970s, is still there. Like a clock stopped in time. It is surrounded by military barriers, both on the Greek and Turkish sides. I almost got stuck in the mud of a goat farm, the closest point to the runway, according to Google Maps.
On the other hand, the city of Famagusta was reopened for visitation. It reminded me a lot of Pripyat, the Soviet city next to Chernobyl, in Ukraine, where all the buildings are about to collapse. I rented a bicycle, as old as the city. On the beach there were tourists dancing and swimming in the turquoise blue sea without looking back at the decrepit hotels and shops that have not been open since 1974.
The excitement of the tourists reminded me of the lively restaurants where I dined, the cafes full of people talking, the antique and souvenir markets. Life goes on. Walls can be erected, politics can get more and more byzantine, problems more complex to solve. It is in places like Nicosia that life happens now. Living for today is much more important than remembering 1974 or hoping that some day things will be resolved.
Primo você escreve muito bem ! Visitar o Chipre é apenas para exploradores… estamos aqui e seu texto esta ajudando a entender esse lugar estranho
Sempre muito bem escrito e uma delícia de ler. Obrigado Vicente por dividir suas experiências maravilhosas.
Abração