TravelVince News #15
O inimigo mora ao lado e o melhor trabalho do mundo | The enemy next door and the best job in the world
For English, please scroll down to the British flag and Italic text. Thanks! If you haven't subscribed yet, please do so down here:
🇧🇷 Na Biblioteca Braidense em Milão, li um texto do Umberto Eco que me impactou. O título é "A Conspiração Perfeita": "sempre conheci pessoas que temiam a conspiração de um inimigo oculto. Os hebreus pro meu avô, os maçons pros jesuítas, os jesuítas pro meu pai garibaldino, os carbonari para os reis europeus… cada um tem a sua conspiração…". Em seguida, num artigo do El País sobre a Comissão da Verdade na Colômbia, descobri que essa "Fórmula Universal da Conspiração" foi usada ad nauseum durante a Guerra Civil, onde o inimigo interno mudava constantemente no discurso oficial. O "outro" tinha que ser eliminado. Durou tanto tempo que todos os colombianos, em um um certo ponto, foram inimigos entre si. A frase de conclusão da Comissão é: "a única maneira de deixar a violência para trás é reencontrar a empatia e a solidariedade". Essas palavras andam bastante em falta ultimamente. No início de 2020 entramos num túnel que, ao invés de desembocar num lugar mais ou menos parecido com o que vivíamos, nos derramou numa realidade paralela. São elucubrações que tenho durante o dia, tomando um café, esperando o metrô, caminhando pelas cidades. Chamo de "constante histeria coletiva" e é bem mais aguda no universo online, onde passamos cada vez mais tempo. Na vida real ainda há espaço para ver o sol nascer e conhecer gente nova. O segredo é conseguir desligar o 5G.
Duas cidades por onde caminhei bastante em julho e agosto foram Nápoles e Amsterdã. Me apaixonei pelas duas. Sou daqueles que chega num lugar e já começa a planejar uma vida toda por ali. Analiso os preços dos imóveis (compra e aluguel), tiro fotos das ofertas de trabalho (cafés, livrarias, lojas), pego ônibus de um lado para o outro até me sentir confortável em navegar sem o celular. Nápoles foi um acaso. Era o fim de uma longa estadia na Itália, parte do meu projeto "tornar-se italiano". Desembarquei em Nápoles parlando molto bene e fiz um tour genial que me abriu os olhos para as várias camadas da história da nova cidade, ou nea polis, em grego. São contos de sereias, ovos encantados, sangue milagroso, catacumbas, Maradona e lava do Vesúvio. Me senti tão íntimo que quase pedi a cidade em casamento. Queria que tudo aquilo passasse a fazer parte de mim, ou melhor, queria eu passar a fazer parte de tudo aquilo.
O casamento duraria pouco. Cheguei em Amsterdã e aconteceu tudo outra vez. Aluguei uma casa típica, com fachada estreita e escadas íngremes perto de um canal. O verdadeiro cartão postal. Mergulhei na história da Holanda e do crescimento de um povoado que construiu um dique contra as enchentes do rio Amstel e tornou-se o berço do capitalismo. Uma das cidades mais ricas do mundo na Era dos Descobrimentos, que deveria se chamar Era da Apropriação Alheia. Os holandeses, assim como os franceses, portugueses, espanhóis, ingleses e belgas ocuparam meio mundo, traficaram gente, exploraram terras e deixaram de ter colônias somente depois da Segunda Guerra Mundial.
Como num set de filmagem, tudo é escondido atrás das pinturas de Rembrandt, dos jardins de tulipas, de moinhos de vento, do magnífico Rijksmuseum, das cores de Van Gogh e da imagem liberal de um país onde se vende maconha e sexo sem censura. A Holanda tentava esconder que um dia foi uma potência colonial até os esqueletos saírem do armário. Tanto na Mauritshuis, em Haia, quanto no Rijksmuseum, em Amsterdã, ao lado das explicações sobre as obras de arte, tem outra explicando esse passado até então submerso nos canais da cidade. É um exercício necessário. Uma busca por empatia e solidariedade, quem sabe.
Como em Nápoles, fiz um tour incrível onde conheci gente local, inclusive uma trabalhadora do Distrito da Luz Vermelha. Descobri que um programa básico custa no mínimo 50 euros, a média de tempo que um cliente passa na cabine é de seis minutos e que tem dois botões de pânico, um vermelho, para a polícia, e um preto, para avisar a segurança, dependendo do tipo de problema. Quanto aos coffee shops locais onde se vende maconha, são apenas tolerados. Não há legislação que os legalize. Plantar maconha na Holanda é proibido, ou seja, a mercadoria chega até um dos 165 coffee shops locais por linhas tortas. Ninguém pode comprar mais do que 5 gramas de cannabis por vez. Não tem pirulitos, energéticos ou bebidas alcoólicas. Pelos contos das pessoas no tour, tive a impressão de que Amsterdã é parecida com Berlim, uma cidade que atrai quem é diferente e quer viver sem julgamentos. Amei Amsterdã, mas para tê-la como amante casual. Nápoles permanece a Oficial (até eu me encantar com outras paragens).
Tanto na Itália, quanto na Holanda e agora na França, onde cheguei há poucos dias, passo a manhã trabalhando remotamente com as assinaturas, finanças e curadoria da Amora Livros. Pela tarde, visito livrarias atrás de novidades, escritoras interessantes e títulos que estejam nas filas de tradução para lançamento no Brasil. Sou novidadeiro, então leio livros que chegarão nas livrarias do Brasil e nas caixinhas da Amora só daqui a alguns meses. Considero o melhor trabalho do mundo. Essa é a época ideal na França para quem tem "bibliofilite" pois começa a "Rentrée Littéraire", quando todas as editoras lançam seus maiores apostas, contando com a volta à rotina no país, que passou as últimas 4 a 5 semanas de férias e na seleção para os vários prêmios literários, como o Goncourt, o Femina, o Renaudot e o da Académie française. Todas as livrarias se abarrotam de títulos novos com convite para leituras. Gritam "me leia que eu gosto" como se vestissem a famosa camiseta da Amora Livros.
Com todos os livros que tenho na fila, acredito que terei que passar 2023 numa ilha deserta a fim de digeri-los todos. Não seria uma má ideia e você pode se juntar a mim!
Obrigado por me ler até aqui. Me leia sempre, que gosto muito!
Coisas que escutei no último mês
Amigos são nosso maior patrimônio, do meu pai
O que não se aprende com amor, a vida ensina com dor, de minha amiga Lú Mazzocco
Livros são uma rede rizomática, da autora Ruth Ozeki no podcast Ezra Klein Show
As medidas de urgência se sucedem enquanto as medidas urgentes esperam, no Le Monde Diplomatique
A Liberdade sem Justiça Social é uma conquista muito frágil, de Sandro Pertini, ex-Primeiro Ministro Italiano nos anos 1970
O essencial é que essa memória, desde a sua origem, é falsa. Todas as memórias estão falsificadas, moldadas, reconstruídas ao prazer. Quase não nos damos conta e vamos pela vida convencidos de que sabemos verdades, de Gonzalo Eltesch, escritor chileno
Livros que recomendo
"A Replacement for Religion", da The School of Life
Um livro que propõe repensar a religião, sem dogmas ou denominação, como ajuda aos dias de hoje. Transformar rituais e pensamentos em ferramentas que traduzam as questões do século 21 para nós, humanos com as mesmas estruturas psicológicas das cavernas. Por enquanto só tem a versão em inglês.
"Nada digo de ti, que em ti não veja", de Eliane Alves Cruz
No Brasil colonial, o clero, a elite e os escravizados do Rio de Janeiro têm todos os seus esqueletos no armário. Um romance cheio de personagens, eventos e mistérios com cara de peça de teatro e uma pesquisa histórica primorosa. Foi o livro da caixinha da Amora Livros em agosto. Li também "O Crime no Cais do Valongo" da Eliane e estou louco para ler "Água de Barrela". Tem uma entrevista com ela no Instagram e no blog da Amora. Virei fã de carteirinha dela!
🇬🇧 At the Braidense Library in Milan, I read something by Umberto Eco that had an impact on me. The "The Perfect Conspiracy" goes: "I have always known people who feared the conspiracy of a hidden enemy. The Hebrews for my grandfather, the Freemasons for the Jesuits, the Jesuits for my Garibaldino father, the Carbonari for European kings… each one has his own conspiracy…". Later, in an article at El País about the Truth Commission in Colombia, I learned that this "Universal Conspiracy Formula" was used ad nauseum during the Civil War, where the enemy within was constantly changing in the official discourse. The "other" had to be eliminated. The war lasted so long that all Colombians, in one way or another, were each other's enemies. The Commission's closing sentence is: "the only way to leave violence behind is to rediscover empathy and solidarity". Those words have been missing a lot lately. At the beginning of 2020, we entered a tunnel that, instead of ending up in a place more or less similar to where we lived before, poured us into a parallel reality. These are thoughts I have during the day, drinking coffee, waiting for the subway, walking through cities. I call it "today's constant mass hysteria" and it is much more acute in the online realm, where we spend most of our time (sadly). In real life there is still room for sunrises and to meet new people. The secret is to be able to switch off the 5G.
Two cities where I walked a lot in July and August were Naples and Amsterdam. I fell in love with both. I'm one of those who arrive at a place and already start planning a whole life there. I observe real estate prices (buying and renting), take pictures of job offers (cafes, bookstores, stores), ride buses from one side to the other until I feel comfortable navigating without my cell phone. Naples happened by chance. It was the end of a long sojourn in Italy, part of my "becoming Italian" project. I landed in Naples parlando molto bene and took a brilliant tour that opened my eyes to the many layers of the new city's history, or nea polis in Greek. There are tales of sirens, enchanted eggs, miraculous blood, catacombs, Maradona and hot Vesuvius lava. It felt so intimate I almost asked the city to marry me. I wanted all of that to become part of me, or rather, I wanted to become part of all that.
The marriage would not last long. I arrived in Amsterdam and it happened all over again. I rented a typical Dutch house with a narrow facade, steep stairs, near a canal. A real postcard. I immersed myself in the history of the Netherlands and the growth of a village that built a dam against the floods of the Amstel River. It became the cradle of capitalism, one of the richest cities in the world in the Age of Discoveries, better called the Age of Mass Appropriation. The Dutch, as well as the French, Portuguese, Spanish, English and Belgians occupied half the world, trafficked people, explored lands and stopped having colonies only after the Second World War.
As on a movie set, everything is hidden behind Rembrandt's paintings, tulip gardens, windmills, the magnificent Rijksmuseum, Van Gogh's colors and the liberal image of a country where marijuana and sex are sold freely. The Netherlands tried to hide its colonial past until the skeletons came out of the closet. Both at Mauritshuis, in The Hague, and at the Rijksmuseum, in Amsterdam, beside the explanations about the works of art, there is another one explaining this past that had hitherto been submerged in the city's canals. It is a necessary exercise, a search for empathy and solidarity perhaps.
As in Naples, I took an amazing tour where I met local people, including a worker from the Red Light District. I learned that a basic rendez-vous costs a minimum of 50 euros, the average time a customer spends in a booth is six minutes and that there are two panic buttons, one red for the police, and one black, to alert security, depending on the type of problem. As for local coffee shops where marijuana is sold, they are only tolerated. There is no legislation to legalize them. Growing marijuana in Holland is prohibited. The merchandise arrives at one of the 165 local coffee shops through mysterious supply chains. No one can buy more than 5 grams of cannabis at a time. No lollipops, energy drinks or alcoholic beverages are sold. From the tales of the people on the tour, I got the impression that Amsterdam is similar to Berlin, a city that attracts those who are different and want to live life without judgments. I loved Amsterdam, but to have her as a casual lover. Naples remains the Official (until I get enchanted by another Grande Dame).
In Italy, the Netherlands and now France, where I arrived a few days ago, I spend the morning working remotely with the subscriptions, finances and curatorship of Amora Livros. In the afternoon, I visit bookstores to look for new and interesting writers, titles that are being translated for release in Brazil. I have FOMO when it comes to books. I consider it the best job in the world. This is the ideal time in France for those who have "bibliophilitis". It's the "Rentrée Littéraire", when all the publishers release their biggest bets, counting on the return from vacations, a serious endeavour in France. There is also the selection for the various literary prizes, such as the Goncourt, the Femina, the Renaudot and the Académie française. All bookstores are crammed with new titles inviting you to read them. They shout "read me, I like it" as if they were wearing the famous Amora Livros T-shirt. With all the books I have piled up around me, I believe I will need to spend 2023 on a desert island in order to digest them all. It wouldn't be a bad idea and you can join me!
Thanks for reading me this far. Read me often, I like it a lot!
Things I've heard in the last month
Friends are our greatest heritage, by my father
What you don't learn with love, life teaches with pain, by my friend Lú Mazzocco
Books are a rhizomatic network, by author Ruth Ozeki on the Ezra Klein Show podcast
Emergency measures succeed each other while urgent measures wait, in Le Monde Diplomatique
Freedom without Social Justice is a very fragile achievement, by Sandro Pertini, former Italian Prime Minister from the 1970s
The essential thing is that this memory, from its origin, is false. All memories are falsified, molded, reconstructed for pleasure. We hardly realize it and we go through life convinced that we know truths, by Gonzalo Eltesch, a Chilean writer
Books I recommend
"A Replacement for Religion" by The School of Life
A book that proposes a rethink of religion, without dogmas or denominations, as help to the present day. Transforming rituals and thoughts into tools that translate 21st century issues for us humans who have the same psychological structures since we lived in caves.
"I say nothing about you that I don't see in you", by Eliane Alves Cruz
In colonial Brazil, the clergy, the elite and the enslaved people of Rio de Janeiro each have their skeletons in the closet. A novel full of interesting characters, events and mysteries that read like a theater play with exquisite historical research. It was the book chosen by Amora Livros in August. I also read "O Crime no Cais do Valongo" also by Eliane and I'm dying to read "Água de Barrela". There's an interview with her on Instagram and on Amora's blog. I became a fan of hers! Only in Portuguese for now.
E eu não sabia que vc tinha uma newsletter tão apetitosa como essa. :)
amo o tanto que você me faz viajar, sem sair do sofá...