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Durante anos, quanto contava pra minha mãe das minhas viagens para a Índia, ela fazia uma cara feia e dizia que não tinha vontade nenhuma de ir para lugares tão pobres, sujos e barulhentos. Que bom que os filhos iam até lá, tiravam fotos e voltavam para contar as histórias. Então foi um grande susto, mas também uma bela surpresa quando ela resolveu ir para lá com minhas tias. "Sempre sonhei em ver o Taj Mahal, as vacas zebu e o tigre de Bengala", ela me disse. Fingi que acreditei.
Há tantas coisas entre o Céu e a Terra, escreveu Shakespeare. Descubro cada dia um novo emaranhado nas conversas com ela. Vamos da terra aos céus em segundos. Tenho certeza de que ela esqueceu completamente a história da minha estadia na casa da Anahita, uma amiga de Mumbai, há alguns anos. Ela ficou tão chocada com tudo que jurou que jamais colocaria os pés na Índia. Fui eu quem sorriu por último ao ver as fotos dela, feliz da vida, num riquixá em Nova Délhi.
Anahita trabalhou comigo na Emirates. Ficamos amigos pois éramos vizinhos num prédio antigo da Sheik Zayed Road, em Dubai. Sempre adorei as histórias dela, que pareciam de filme de Bollywood. Quando finalmente passei por Mumbai no final de um périplo indiano de trem e mochila, fui socorrido pelo motorista dela na estação. Quase chorei de emoção com o ar-condicionado da Mercedes. Melhor ainda foi o banho quente, as toalhas felpudas e todas as minhas roupas limpas, lavadas e passadas em cima da cama.
Nos sentamos na varanda para um brunch. Ela pediu para fazerem dosa, uma panqueca bem fininha de farinha de arroz e lentilha, que eu amo. A vista do apartamento era fantástica, apesar de um pouco nebulosa por causa da poluição. Dava para ver toda a extensão de Marine Drive, o Oceano Índico e uma floresta de arranha-céus. De repente um abutre enorme deu uma rasante na varanda e deixou cair um pedaço de pau perto do meu pé. Quando olhei melhor, vi que era um dedo. Dedo de gente. Anahita ficou sem jeito e disse que pela cor da unha, deveria ser da sua avó.
O apartamento fica em Malabar Hill, um dos bairros mais nobres de Mumbai. Atrás do prédio tem um lugar chamado Torre do Silêncio, ou Dakhmeh. É o lugar onde os falecidos da comunidade parsi são levados para que os abutres deem fim ao cadáver. Os parsis, também chamados de zoroastrianos, seguem ritos ancestrais de uma das primeiras religiões monoteístas do mundo. Segundo Zaratustra, assim que morremos, o corpo se torna impuro, por isso não devemos poluir a terra com ele. Nem o fogo (cremando), nem a água. A solução é deixá-lo numa torre do silêncio, em meio à natureza, para os abutres “levarem". Depois os ossos são enterrados numa caverna.
Funcionou durante milênios e, segundo consta, em poucos minutos as aves de rapina comem tudo. Não sobra nem um fiapo para fazer farofa. Só que 90% dos abutres da Índia desapareceram. Foram envenenados por um remédio comum para vacas velhas. Talvez também para avós em fase terminal. Ao desempenharem seu papel essencial na cadeia alimentar, os abutres, gaviões e urubus foram diretamente implicados pela indústria farmacêutica do século 21.
Por isso a avó da Anahita não foi levada aos céus como deveria. Com menos pássaros, instalaram painéis solares para derreter os corpos. Criou-se um viveiro de urubus no parque ao lado da torre. Nada conseguiu solucionar por completo o problema de dedos que caem do céu. Já imaginou se fosse uma mão inteira? Ainda hoje a comunidade está quebrando a cabeça para encontrar uma solução entre ritos milenares e mudanças ambientais.
Foi informação demais para mim, que já vinha abalado de Varanasi e com tudo o que tinha visto boiando no rio Ganges. Passei os últimos dias na cidade tendo visões apocalípticas como as cenas do filme "Ensaio sobre a Cegueira". Por sorte meu destino seguinte foi Kerala, no sul da Índia, onde servem a melhor comida vegetariana do país. Lugar ideal para confabular sobre tudo o que há entre o Céu e a Terra.
ps: a ideia do texto veio ao escutar o podcast 99% Invisible • 597- Towers of Silence. Admiro muito a história dos parsis, que migraram do Irã para a Índia. Veja o link acima para fotos e melhor contexto.
🇬🇧 For years, whenever I told my mom about my trips to India, she would grimace and say she had no desire to go to poor, dirty, and noisy places. It was enough that her children went there, took photos, and came back to tell her about it. So it was a big surprise, full of joy, when out of the blue she decided to go there with my aunts. "I've always dreamed of seeing the Taj Mahal, the zebu cows, and the Bengal tiger," she told me. I pretended to believe her.
"There are so many things between Heaven and Earth," Shakespeare wrote. We get tangled up in our conversations every day. We go from earth to heaven in seconds with her memory loss (and mine too). I'm sure she completely forgot about the story of my stay at Anahita's, a friend from Mumbai, a few years ago. She was so shocked by everything I told she swore she would never set foot in India. I smirked when I saw her happily riding a rickshaw in New Delhi on Instagram. Incredible India!
Anahita worked with me at Emirates. We became friends because we were neighbors in an old building on Sheikh Zayed Road in Dubai. I always loved her stories, which seemed straight out of a Bollywood movie. When I finally passed through Mumbai at the end of an Indian train and backpacking adventure, I was rescued by her driver at the station. I almost cried with emotion at the sight of the Mercedes and its air conditioning. Even better was the hot shower, the fluffy towels, and all my clothes clean, washed, and ironed on the bed.
We sat on the balcony for brunch. She asked the staff to make dosa, a very thin pancake made of rice flour and lentils, which I love. The view from the apartment was fantastic, although a bit hazy due to pollution. You could see the entire length of Marine Drive, the Indian Ocean, and a forest of skyscrapers. Suddenly a huge vulture swooped down onto the balcony and dropped a small stick near my foot. Looking closer I realised it was a finger. A human finger. Anahita felt awkward and said that from the nail's color, it must be her recently deceased grandmother's.
The apartment was in Malabar Hill, one of the most upscale neighborhoods in Mumbai. Behind the building is a place called the Tower of Silence, or Dakhmeh. It's where deceased members of the Parsi community are taken so that vultures can dispose of the corpse. The Parsis, also called Zoroastrians, follow ancestral rites of one of the world's earliest monotheistic religions. According to Zoroaster, once we die, our body becomes impure, so it should not pollute the earth. Neither fire (cremation) nor water. The solution is to leave it in a tower of silence, amidst nature, for the vultures to "take it away". The leftover bones are buried in a cave.
It worked for millennia, and reportedly, in a few minutes, the birds of prey eat everything. Not even a scrap is left. But 90% of India's vultures have disappeared. They have been poisoned by a common medicine for old cows. Perhaps also for very old grandmothers. By performing their essential role in the food chain, vultures, hawks, and buzzards were directly implicated by the 21st-century pharmaceutical industry.
So Anahita's grandmother wasn't taken to the skies as she should have been. With fewer birds, solar panels were installed to melt the bodies. A vulture sanctuary was created in the park next to the tower. Nothing really solved the problem of fingers falling from the sky. Can you imagine if it were a whole hand? Even today, the community is racking its brains off to find a solution that marries ancient traditions and environmental changes.
It was too much information for me, already shaken from Varanasi and everything I had seen floating in the Ganges. I spent the last days in the city having apocalyptic visions like scenes from the movie "Blindness". Luckily, my next destination was Kerala, in southern India, where they serve the best vegetarian food in the country. An ideal place to think about all that lies between Heaven and Earth.
ps: the idea came up while listening to 99% Invisible • 597- Towers of Silence.
I really admire the history and rituals of the Parsees, who fled Persia (now Iran), and found sanctuary in India. Check the link above for more and for pics.
Parece que a Índia também é a terra do realismo mágico!
Adorei, lendo e imaginado as cenas. E o dedo voador!? Gente!!