Água de Rosas

?? Carime chegou ao Brasil com dois anos de idade. Aos vinte tinha marido italiano e era mãe. Falava português sem o sotaque vergonhoso dos pais, ao contrário do marido, que cantarolava as frases e mexia tanto as mãos ao falar que arranhava-se com o garfo. Conseguiram furar o bloqueio étnico árabe-italiano compartilhando bênçãos e aves-maria. Carime desconfiava que a sogra só tinha aprovado o casamento porque via certa sofisticação levantina em sua família.

Na cozinha, Carime preparava pratos aromáticos de lentilha, grão-de-bico e beringela regados com azeite de oliva. Os almoços dominicais eram viagens ao Líbano com pitadas vênetas ensinadas pela sogra para agradar o marido. Todo o amor e felicidade que sentia por sua casa, por seus filhos e netos ela traduzia no fogão.

Um segredo que nunca anotou no livro de receitas era a essência de rosas, que pingava nas panelas feito água de colônia. Usava o ingrediente também para lavar as roupas da família e como adereço à sua toalete. Era como uma marca registrada.

Quando os netos nasceram, Carime tomava conta deles. O mundo havia mudado bastante.   Até mesmo as filhas trabalhavam. Assim como as noras. Ninguém tinha tempo de aprender a cozinhar. Onde já se viu perderem tanto tempo fora de casa, longe do melhor da vida, dos filhos? Sabia que os pequenos adoravam suas histórias recheadas de tapetes voadores e odaliscas, de minaretes e montanhas nevadas. Era a avó Sherazade, que através das fábulas, emendava um doce de nozes com um chá de menta, um prato de charutinho de parreira com outro de esfihas. E essência de rosas.

Hoje, Marco, seu neto mais velho, senta-se com a esposa e os filhos num restaurante de Beirute. Pedem mezé, variedade de pratinhos para compartilhar. Apesar de ser o primeiro dia na cidade, acham as pessoas estranhamente familiares. Quando chega o café, acompanhado de bolachinhas, ele morde a primeira e não contém um choro emocionado. Em um instante, revive sua infância ao pé da avó. Era Carime encarnada num sequilho temperado com água de rosas que assoprava em seu ouvido o maior dos segredos, que aquele país distante sempre tinha feito parte dele.

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Coronadays 28.05.2020

Bom dia, Vietnã!